Infelizes do Brasil, uni-vos! Há o risco de que vocês comecem a apanhar de vara na rua, mais ou menos como a polícia religiosa faz em certos países islâmicos com o nobre intuito de resguardar a fé. Por lá, levam varadas as mulheres desacompanhadas ou que não se comportam segundo o decoro… Por aqui, as Milícias da Felicidade buscariam enquadrar aqueles que não conseguiram, sei lá, encontrar o ser que os protegesse “contra o não-ser universal, arcano impossível de ler”, como disse o poeta. Se preciso, o estado ministrará aos desafortunados doses do “Soma”, uma droga sem efeitos colaterais, que induz à imediata felicidade, como em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Nós somos assim: não há bobagem benigna que não estejamos dispostos a experimentar.
A PEC da Felicidade, como está sendo chamada, é de autoria do senador Cristovam Buarque (PDT-DF), que acaba de ser reeleito. Certamente ele não vislumbrou nada de mais urgente no país. Hoje, o Artigo 6º da Constituição está assim redigido: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” O senador achou que o paraíso não estava devidamente assegurado e resolveu explicitar a coisa. A redação ficaria assim: “São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Sabem o que é mais fabuloso nisso tudo? As falsas informações que vão circulando, tentando demonstrar que o Brasil estaria seguindo o passo de outros países. A Constituição da França traria assegurado esse direito. A íntegra está aqui. “Felicidade”, em artigo, não tem, não! No preâmbulo, o texto, de 1958, explicita sua adesão aos princípios gerais da Constituição anterior, de 1946, que, com efeito, fica a um passo de instituir o paraíso na terra, mas não chega a tocar na palavra “bonheur” (felicidade), que aparece, sim, no preâmbulo da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789, que a Constituição diz ser também um de seus fundamentos.
Também se diz que a Constituição do Japão assegura a felicidade. A íntegra está aqui. Os mistificadores certamente se referem ao Artigo 13. É uma pilantragem intelectual. Ela estabelece que o direito “à vida, à liberdade e à busca da felicidade” deve ser o principal objetivo do legislador, mas atenção!, só na medida em que não agrida o “bem-estar público”. Eu diria que o sentido é contrário àquele alardeado.
O outro país de referência é a gloriosa monarquia do… Butão! Essa bobagem se espalhou depois que Pablo Guimón, do jornal espanhol El País, fez uma reportagem cantando as glórias daquele país, onde o monarca se saiu com a máxima de que, mais importante do que o PIB, é a FIB — ou seja, em vez de os países se notabilizarem pelo seu Produto Interno Bruto, devem ser conhecidos pela Felicidade Interna Bruta. Também no Butão, existem 3% de recalcitrantes: a reportagem do El País informa que 52% da população do país se declarou “feliz”; 45%, muito feliz, e só 3% teve a ousadia de se dizer “infeliz” (mesmo índice que acha Lula “ruim ou péssimo” no Brasil).
Mas eu entendo essa invejável taxa de felicidade bruta do Butão. Só 47% da população é alfabetizada (165º no ranking mundial), a mortalidade infantil é de 45/1000 (131º), e o IDH, 0,619 (132º). O Brasil mesmo é a prova de que a população não precisa nem de esgoto para ser feliz ou para “aprovar” o governo. Monteiro Lobato, que o governo Lula tentou censurar, é que achava que não se podia ser feliz de cócoras, no mato. É claro que sim!
Por Reinaldo Azevedo
Eu tenho um medo, confesso!
Meu medo é que, um dia, os reacionários que pululam na política brasileira queiram adotar no Brasil a Constituição da Dinamarca, por exemplo (aqui). Saibam que, naquele fétido e miserável reino — à diferença do Paraíso Perdido do Butão, que inspirou o nobilíssimo senador Cristovam Buarque —, não tem essa de direito à felicidade coisa nenhuma! A Dinamarca é tão atrasada, mas tão atrasada, que nem mesmo torna a morte inconstitucional, como se faz no Brasil. Levada a nossa Constituição ao pé da letra, um morto não é um morto, mas alguém privado do “direito à vida”.
A Dinamarca também tem um pé na teocracia, de onde resulta o horror que se vive lá. O texto reconhece a Igreja Luterana como oficial e diz que ela será financiada pelo Estado. Marilena Chaui ainda pede um golpe laico e iluminista naquel reino do atraso, com a colaboração de alguns de nossos colunistas. O país vive também sob uma severa ditadura militar. Vejam lá o artigo 80! Forças armadas podem dispersar a multidão em caso de distúrbio público. Só vão tomar o cuidado de fazer três advertências em nome do rei. Se não forem atendidas, porrete! Ah, sim: isso se não forem atacadas antes. Caso o arenque tenha caído mal no almoço e os nativos estejam muito inquietos, o pau come logo de cara. Na ditadura dinamarquesa, o direito de reunião em locais públicos é relativo. Em princípio, pode. Mas a polícia tem o direito de estar presente. Caso se considere que o ato põe em risco a paz pública, a manifestação pode ser proibida.
O Artigo 75 lembra, mas de muito longe, os princípios progressistas do Brasil e do Butão. Mas que se note, hein!? A Dinamarca está na infância dos direitos sociais. A Constituição diz que todo mundo tem direito ao trabalho… Epa! Não é bem assim. Não é exatamente um “direito”. O texto diz que tudo será feito com o objetivo de garantir o acesso ao trabalho — e em nome do bem comum. Sim, o estado proverá aqueles que não puderem se manter, desde que não haja um responsável legal para fazê-lo. Mas o assistido passa a ter algumas obrigações legais.
E a felicidade?
Não! Aquela monarquia teocrática, que tem a coragem de garantir a inviolabilidade da propriedade privada (Artigo 73) e de proibir qualquer restrição ao comércio (Artigo 74), esse país não garante a felicidade de ninguém! Que gente reacionária!
A Dinamarca não conhece Cristovam Buarque e a esquerda brasileira. Entreguem aquele país a esses valentes por uns quatro anos, e os dinamarqueses saberão como é viver no Butão!!!
Por Reinaldo Azevedo
Ei, eu tenho o direito de ir para o inferno. Me mandem para a Dinamarca!!!
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