sábado, 21 de setembro de 2013

Aécio relata transição democrática do Brasil com seu avô Tancredo Neves

Leiam na Veja:

Aécio: 'Eu vi meu avô sair da vida e entrar para a história'


Equilibrando-se entre o patrimônio coletivo e a memória pessoal, o neto de Tancredo Neves traz para o presente o curto porém decisivo período que vai da vitória do político mineiro no Colégio Eleitoral, ocorrida em janeiro de 1985, à sua morte antes da posse na Presidência da República, apenas três meses depois

O PESO DO DESTINO - O caixão com o corpo do presidente eleito é carregado na rampa do Planalto (1985); e Aécio com Tancredo, então governador de Minas Gerais, em Belo Horizonte (1983): missão a cumprir
O PESO DO DESTINO - O caixão com o corpo do presidente eleito é carregado na rampa do Planalto (1985); e Aécio com Tancredo, então governador de Minas Gerais, em Belo Horizonte (1983): missão a cumprir (Fotos Ricardo Azoury/F4 e álbum de família)


Olhando para trás, é difícil acreditar que tantas mudanças tenham ocorrido em tão pouco tempo, somente dois anos: 1984 e 1985. Tive o privilégio de, ainda muito jovem, com 24 anos, acompanhar de perto aquele período decisivo na vida de nosso país, e de, com ele, aprender várias lições - uma, especialmente importante: a de que cada geração tem seu compromisso com a história. Por isso, é necessário que os líderes estejam sempre à altura dos desafios de seu tempo.


Foi fundamental para o Brasil, naquele momento, contar com homens como Tancredo Neves, meu avô, e Ulysses Guimarães, que, entre tantos outros, nos conduziram, com grandeza, naquela travessia. A intensidade daqueles dias me acompanha até hoje - na memória e no coração. Primeiro, as viagens pelo Brasil, os comícios das Diretas e a frustração pela não aprovação da emenda Dante de Oliveira.


Depois, os dias que se seguiram à renúncia de Tancredo ao governo de Minas, quando me mudei com ele para um apartamento na quadra 206 Sul em Brasília, onde fui espectador privilegiado da memorável articulação política que conseguiu vencer vinte anos de arbítrio.

Fazia-se política pelo Brasil.


Foi um trabalho de artífice, minuciosamente planejado por grandes brasileiros para que a mobilização nacional daqueles dias pudesse garantir, de alguma forma, aquele que era nosso maior objetivo: o fim do autoritarismo. Nosso reencontro com a liberdade e a democracia. Trabalho que culminou no lançamento de Tancredo como candidato das oposições à Presidência da República e em sua vitória no Colégio Eleitoral. Três meses depois, ele morreria. Apenas três meses.


Três meses em que testemunhei, dia e noite, a luta de um homem em defesa de seu povo.


Três meses em que testemunhei, sem saber - porque muitas vezes só o tempo nos dá a compreensão do que vivemos -, um homem cumprindo seu destino.


É a minha lembrança pessoal desse período, entre a eleição e a morte de Tancredo, que, a convite de VEJA, tento dividir com você, leitor, quase trinta anos depois. Faço isso sabendo como é difícil encontrar o equilíbrio quando a história coletiva ainda é memória pessoal.


A vitória no Colégio Eleitoral foi fruto de uma bem-sucedida estratégia conduzida por diversos e diferentes atores, unidos pelo objetivo de pôr fim à ditadura. Estratégia que incluiu decisiva mobilização popular e uma paciente costura de bastidores.


O 15 de janeiro de 1985 amanheceu diferente em todo o país. Carros buzinavam em todas as cidades, bandeiras ocupavam ruas. À noite, no Rock in Rio, Cazuza embrulhou-se na bandeira brasileira, saudou a democracia recém-conquistada e cantou Pro Dia Nascer Feliz. 


Para grande parte das pessoas, a transição democrática terminava ali, com a eleição de Tancredo. Mas, por mais que esse fosse um marco fundamental, sabíamos que não era o fim do processo. Ainda existiam focos de resistência no regime militar, e fontes do presidente eleito o aconselhavam a ser prudente e manter a vigilância. A própria VEJA, em 2005, revelou como, enquanto o país comemorava, uma delicada operação política mantinha seu curso nos bastidores.


A viagem ao exterior realizada por Tancredo e os encontros com chefes de estado cumpriram um papel estratégico que muitos não perceberam: o de tornar nosso processo de redemocratização irreversível. Ao receberem aquele senhor baixinho, inteligente e bem-humorado, simbolicamente, as antigas democracias reconheciam e saudavam a nova democracia brasileira.


Voltamos ao Brasil e nos mudamos para a Granja do Riacho Fundo, onde os trabalhos continuaram.

Tancredo sabia que repousava sobre seus ombros a responsabilidade pela transição democrática. Tinha consciência de que o país caminhava em terreno ainda frágil. Temia especialmente que a percepção sobre alguns problemas de saúde que estavam surgindo pudesse, naquele momento, servir como pretexto para as forças políticas que buscavam o retrocesso.


Ele não podia correr riscos. Cada dia vencido era mais um passo na direção da tão sonhada democracia. Provavelmente, por isso, descuidou-se tanto de sua saúde. Tinha uma missão a cumprir, e a cumpriria.


Em 14 de março, véspera da posse, seguimos para a missa no Santuário Dom Bosco, em Brasília. Ele já não se sentia bem. Voltamos para casa e, com a piora de sua saúde, chamamos os médicos.

Sentei-me a seu lado na cama e estávamos os dois sozinhos, quando ele me olhou com intensidade e disse: “Chame o Zé Hugo (José Hugo Castelo Branco, que teria sido seu ministro da Casa Civil) e peça a ele que traga os atos de nomeação do ministério”. Sugeri que deixasse para o dia seguinte. Ele insistiu. Os atos chegaram.


Com muita dificuldade, com as mãos trêmulas, ele os assinou um a um e mandou que fossem imediatamente publicados. Só mais tarde entendi por quê. No dia seguinte, quando ficou claro que ele não tomaria posse, ainda teria havido tentativas de criar dificuldades para a posse do vice-presidente, José Sarney. Tarde demais. Graças ao último esforço de Tancredo, o Brasil já contava com um novo ministro do Exército, que detinha o controle da tropa e era leal ao novo governo democrático.


Os médicos chegaram e nos informaram que Tancredo precisaria ser internado e operado imediatamente. Sugerimos que fosse levado a São Paulo. Eles nos disseram que não se responsabilizariam e que não o acompanhariam na viagem. Alegaram que ele não tinha condições de ser deslocado e ressalvaram que, por se tratar de um problema superficial, Tancredo poderia tomar posse no dia seguinte.


Ele nunca tomou posse.


O país conhece a sucessão de erros e irresponsabilidades que se seguiram e que, ainda hoje, me revoltam como brasileiro e me ferem como neto.


Ao entrar no hospital, ele se dirigiu a seu filho, meu tio, Tancredo Augusto e disse: “Fiquem atentos. Lembrem-se do que aconteceu com Juscelino e Jango”.


Esse comentário, por si só, revela a tensão que vivíamos naqueles dias. Preocupado com o que poderia acontecer caso não tomasse posse, ele insistiu para não ser operado naquele momento: “Vocês precisam me ajudar a conseguir tomar posse. Depois, podem fazer o que quiserem comigo”.


No hospital, sua única preocupação era o país. Ciente da grande frustração popular e das dificuldades que José Sarney poderia estar enfrentando, ditou-me uma carta para ser encaminhada ao presidente em exercício e que pudesse ajudar a legitimá-lo, naquele momento, no exercício da Presidência da República. Foi o último documento que ele assinou.


Passei todos aqueles dias e noites no hospital. Ia diariamente à UTI, tentava animá-lo com notícias otimistas. Numa dessas ocasiões, ouvi dele suas últimas palavras. Enfraquecido no leito, cansado, olhando para o infinito, resignado, ele disse: “Eu não merecia isso”.


Não merecia. O Brasil também não.


Há uma passagem do Antigo Testamento, reproduzida na capa do extinto Jornal da Tarde na edição sobre sua morte, da qual sempre me recordo: “E o Senhor lhe disse: ‘Eis a terra. Eu a darei à tua posteridade. Tu a viste com teus olhos, mas não passarás a ela’ ”.


Crescemos, nós, os netos, ouvindo de meu avô o seu testemunho pessoal sobre os intensos momentos que ele vivera como personagem da história nacional. “Só se lembram de mim nas horas de tempestade”, costumava dizer.


Relembrava especialmente os momentos que antecederam o suicídio do presidente Getúlio Vargas. Ele jamais deixou de lado a grande admiração que nutria pelo ex-presidente, que, em suas palavras, havia chegado ao extremo de entregar a própria vida por amor ao Brasil.


Descrevia, sempre emocionado, a pressão daquelas horas e a comoção popular no enterro de Vargas, que entendia como autêntica salvaguarda que impediu um golpe político.


Recorro a palavras que já foram escritas por um de nós para encerrar este testemunho pessoal e dividir, com vocês, um pouco de minha saudade, afeto e respeito.


Mal sabíamos - nós e ele - durante todos os anos em que, após o almoço de domingo, ouvíamos, com atenção, seus relatos que, três décadas depois da morte de Vargas, uma outra multidão, em torno de um outro caixão, velaria o corpo de um outro presidente.


E que, por amor ao Brasil, ele também deixaria a vida para entrar na história.


Aécio Neves é senador (PSDB-MG)

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