Aécio: 'Eu vi meu avô sair da vida e entrar para a história'
Equilibrando-se entre o patrimônio coletivo e a memória pessoal, o neto de Tancredo Neves traz para o presente o curto porém decisivo período que vai da vitória do político mineiro no Colégio Eleitoral, ocorrida em janeiro de 1985, à sua morte antes da posse na Presidência da República, apenas três meses depois
O PESO DO DESTINO - O caixão com o corpo do presidente
eleito é carregado na rampa do Planalto (1985); e Aécio com Tancredo,
então governador de Minas Gerais, em Belo Horizonte (1983): missão a
cumprir
(Fotos Ricardo Azoury/F4 e álbum de família)
Olhando para trás, é difícil acreditar que tantas mudanças tenham
ocorrido em tão pouco tempo, somente dois anos: 1984 e 1985. Tive o
privilégio de, ainda muito jovem, com 24 anos, acompanhar de perto
aquele período decisivo na vida de nosso país, e de, com ele, aprender
várias lições - uma, especialmente importante: a de que cada geração tem
seu compromisso com a história. Por isso, é necessário que os líderes
estejam sempre à altura dos desafios de seu tempo.
Foi fundamental para o Brasil, naquele momento, contar com homens
como Tancredo Neves, meu avô, e Ulysses Guimarães, que, entre tantos
outros, nos conduziram, com grandeza, naquela travessia. A intensidade
daqueles dias me acompanha até hoje - na memória e no coração. Primeiro,
as viagens pelo Brasil, os comícios das Diretas e a frustração pela não
aprovação da emenda Dante de Oliveira.
Depois, os dias que se seguiram à renúncia de Tancredo ao governo de
Minas, quando me mudei com ele para um apartamento na quadra 206 Sul em
Brasília, onde fui espectador privilegiado da memorável articulação
política que conseguiu vencer vinte anos de arbítrio.
Fazia-se política pelo Brasil.
Foi um trabalho de artífice, minuciosamente planejado por grandes
brasileiros para que a mobilização nacional daqueles dias pudesse
garantir, de alguma forma, aquele que era nosso maior objetivo: o fim do
autoritarismo. Nosso reencontro com a liberdade e a democracia.
Trabalho que culminou no lançamento de Tancredo como candidato das
oposições à Presidência da República e em sua vitória no Colégio
Eleitoral. Três meses depois, ele morreria. Apenas três meses.
Três meses em que testemunhei, dia e noite, a luta de um homem em defesa de seu povo.
Três meses em que testemunhei, sem saber - porque muitas vezes só o
tempo nos dá a compreensão do que vivemos -, um homem cumprindo seu
destino.
É a minha lembrança pessoal desse período, entre a eleição e a morte
de Tancredo, que, a convite de VEJA, tento dividir com você, leitor,
quase trinta anos depois. Faço isso sabendo como é difícil encontrar o
equilíbrio quando a história coletiva ainda é memória pessoal.
A vitória no Colégio Eleitoral foi fruto de uma bem-sucedida
estratégia conduzida por diversos e diferentes atores, unidos pelo
objetivo de pôr fim à ditadura. Estratégia que incluiu decisiva
mobilização popular e uma paciente costura de bastidores.
O 15 de janeiro de 1985 amanheceu diferente em todo o país. Carros
buzinavam em todas as cidades, bandeiras ocupavam ruas. À noite, no Rock
in Rio, Cazuza embrulhou-se na bandeira brasileira, saudou a democracia
recém-conquistada e cantou Pro Dia Nascer Feliz.
Para grande parte das pessoas, a transição democrática terminava ali,
com a eleição de Tancredo. Mas, por mais que esse fosse um marco
fundamental, sabíamos que não era o fim do processo. Ainda existiam
focos de resistência no regime militar, e fontes do presidente eleito o
aconselhavam a ser prudente e manter a vigilância. A própria VEJA, em
2005, revelou como, enquanto o país comemorava, uma delicada operação
política mantinha seu curso nos bastidores.
A viagem ao exterior realizada por Tancredo e os encontros com chefes
de estado cumpriram um papel estratégico que muitos não perceberam: o
de tornar nosso processo de redemocratização irreversível. Ao receberem
aquele senhor baixinho, inteligente e bem-humorado, simbolicamente, as
antigas democracias reconheciam e saudavam a nova democracia brasileira.
Voltamos ao Brasil e nos mudamos para a Granja do Riacho Fundo, onde os trabalhos continuaram.
Tancredo sabia que repousava sobre seus ombros a responsabilidade
pela transição democrática. Tinha consciência de que o país caminhava em
terreno ainda frágil. Temia especialmente que a percepção sobre alguns
problemas de saúde que estavam surgindo pudesse, naquele momento, servir
como pretexto para as forças políticas que buscavam o retrocesso.
Ele não podia correr riscos. Cada dia vencido era mais um passo na
direção da tão sonhada democracia. Provavelmente, por isso, descuidou-se
tanto de sua saúde. Tinha uma missão a cumprir, e a cumpriria.
Em 14 de março, véspera da posse, seguimos para a missa no Santuário
Dom Bosco, em Brasília. Ele já não se sentia bem. Voltamos para casa e,
com a piora de sua saúde, chamamos os médicos.
Sentei-me a seu lado na cama e estávamos os dois sozinhos, quando ele me olhou com intensidade e disse: “Chame o Zé Hugo (José Hugo Castelo Branco, que teria sido seu ministro da Casa Civil)
e peça a ele que traga os atos de nomeação do ministério”. Sugeri que
deixasse para o dia seguinte. Ele insistiu. Os atos chegaram.
Com muita dificuldade, com as mãos trêmulas, ele os assinou um a um e
mandou que fossem imediatamente publicados. Só mais tarde entendi por
quê. No dia seguinte, quando ficou claro que ele não tomaria posse,
ainda teria havido tentativas de criar dificuldades para a posse do
vice-presidente, José Sarney. Tarde demais. Graças ao último esforço de
Tancredo, o Brasil já contava com um novo ministro do Exército, que
detinha o controle da tropa e era leal ao novo governo democrático.
Os médicos chegaram e nos informaram que Tancredo precisaria ser
internado e operado imediatamente. Sugerimos que fosse levado a São
Paulo. Eles nos disseram que não se responsabilizariam e que não o
acompanhariam na viagem. Alegaram que ele não tinha condições de ser
deslocado e ressalvaram que, por se tratar de um problema superficial,
Tancredo poderia tomar posse no dia seguinte.
Ele nunca tomou posse.
O país conhece a sucessão de erros e irresponsabilidades que se
seguiram e que, ainda hoje, me revoltam como brasileiro e me ferem como
neto.
Ao entrar no hospital, ele se dirigiu a seu filho, meu tio, Tancredo
Augusto e disse: “Fiquem atentos. Lembrem-se do que aconteceu com
Juscelino e Jango”.
Esse comentário, por si só, revela a tensão que vivíamos naqueles
dias. Preocupado com o que poderia acontecer caso não tomasse posse, ele
insistiu para não ser operado naquele momento: “Vocês precisam me
ajudar a conseguir tomar posse. Depois, podem fazer o que quiserem
comigo”.
No hospital, sua única preocupação era o país. Ciente da grande
frustração popular e das dificuldades que José Sarney poderia estar
enfrentando, ditou-me uma carta para ser encaminhada ao presidente em
exercício e que pudesse ajudar a legitimá-lo, naquele momento, no
exercício da Presidência da República. Foi o último documento que ele
assinou.
Passei todos aqueles dias e noites no hospital. Ia diariamente à UTI,
tentava animá-lo com notícias otimistas. Numa dessas ocasiões, ouvi
dele suas últimas palavras. Enfraquecido no leito, cansado, olhando para
o infinito, resignado, ele disse: “Eu não merecia isso”.
Não merecia. O Brasil também não.
Há uma passagem do Antigo Testamento, reproduzida na capa do extinto Jornal da Tarde
na edição sobre sua morte, da qual sempre me recordo: “E o Senhor lhe
disse: ‘Eis a terra. Eu a darei à tua posteridade. Tu a viste com teus
olhos, mas não passarás a ela’ ”.
Crescemos, nós, os netos, ouvindo de meu avô o seu testemunho pessoal
sobre os intensos momentos que ele vivera como personagem da história
nacional. “Só se lembram de mim nas horas de tempestade”, costumava
dizer.
Relembrava especialmente os momentos que antecederam o suicídio do
presidente Getúlio Vargas. Ele jamais deixou de lado a grande admiração
que nutria pelo ex-presidente, que, em suas palavras, havia chegado ao
extremo de entregar a própria vida por amor ao Brasil.
Descrevia, sempre emocionado, a pressão daquelas horas e a comoção
popular no enterro de Vargas, que entendia como autêntica salvaguarda
que impediu um golpe político.
Recorro a palavras que já foram escritas por um de nós para encerrar
este testemunho pessoal e dividir, com vocês, um pouco de minha saudade,
afeto e respeito.
Mal sabíamos - nós e ele - durante todos os anos em que, após o
almoço de domingo, ouvíamos, com atenção, seus relatos que, três décadas
depois da morte de Vargas, uma outra multidão, em torno de um outro
caixão, velaria o corpo de um outro presidente.
E que, por amor ao Brasil, ele também deixaria a vida para entrar na história.
Aécio Neves é senador (PSDB-MG)
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